Vinte anos depois de sua estreia, o clássico sul-coreano Oldboy ganhou uma versão remasterizada com direito à exibição nas salas de cinema do país. Nessas duas décadas a indústria cultural da República da Coreia conquistou importância mundial, ápice de um projeto estatal bilionário de exportação de cultura pop e criação de soft power. A Hallyu, onda coreana, gerou produções de grande sucesso no cinema e na música, como Parasita (filme vencedor do Oscar), Round 6 e os grupos de K-Pop: BTS e Blackpink. A influência também se estenderia ao campo da moda, da literatura em quadrinhos e dos games.

             A história de Oldboy se passa na Coreia contemporânea. A ambientação escolhida pelo diretor Park Chan-wook segue o estilo do cinema neo-noir. O que propositalmente reforça a condição melancólica da vida de Dae-su, personagem principal da trama. Tudo começou estranhamente depois que Dae-su foi levado a uma delegacia por causa de embriaguez. Na saída, enquanto realizava uma ligação telefônica, é raptado e jogado num quarto de hotel onde descobre pela TV que é acusado de matar a própria esposa. Lá vive durante 15 anos sem saber o motivo do cárcere, ruminando o ódio e imaginado uma vingança. Sentimentos que o ajudam a suportar o  martírio. Assim como no processo de Josef K., nada fazia sentido.

            A dualidade, natureza e cultura, é recorrente no filme, assim como a violência tarantinesca e as referências a Stanley Kubrick. A prisão produz um efeito animalizador em Dae-su, que pode ser observado em diferentes cenas, como quando ele come um polvo vivo e nas torturas físicas que faz em seus inimigos ao arrancar seus dentes. Ao longo da história Dae-su oscila entre a monstruosidade e a humanidade. Não que essas coisas existam claramente separadas, ao contrário do que acontece com Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert L. Stevenson.

            A mitologia grega é uma das inspirações para o roteiro de Oldboy. Édipo e o problema moral da violação do tabu do incesto reaparece na obra coreana. Dae-su, que havia praticado vários crimes e atitudes imorais, não suporta descobrir que teve relações sexuais com a própria filha, numa espécie de afirmação do domínio da cultura. A violência cumpre no filme uma função catártica e é utilizada como meio de reparação moral. Assim como Édipo furou os próprios olhos, Dae-su corta a própria língua: “no princípio era a palavra”. É a palavra que cria o mundo, nesse caso a fofoca. O infortúnio de Dae-su começa depois de ter flagrado o seu colega de escola Lee Woo-jin em uma relação sexual incestuosa com a própria irmã. Ele contou a história a um amigo que a espalhou. A situação fica moralmente insustentável e leva a jovem Soo-ah a se suicidar.

            A tragédia coreana, porém, é uma tragédia do nosso tempo. Os antigos gregos pensavam os acontecimentos da vida a partir da ideia do destino. De uma ordem que estava além dos desejos individuais. A modernidade matou impiedosamente o destino, retirando a magia do mundo. A realidade agora não possui um sentido intrínseco, algo como um telos. Acreditamos que o mundo é o resultado das escolhas que fazemos e que a verdade é subjetiva. O indivíduo vira a pedra de toque, o início, o meio e o fim. Vivendo numa condição miseravelmente solitária.

            A natureza do mal (ou a maneira como o pensamos) também foi sendo modificada ao longo da história da humanidade. A filósofa Susan Neiman diz que o grande terremoto de Lisboa de 1755 e Auschwitz são eventos que mudaram a forma como pensamos no ocidente o bem, o mal e a justiça. O terremoto de Lisboa impôs uma série de questões morais e filosóficas para os teólogos da época e para os pensadores iluministas que passaram a questionar a bondade de Deus. A visão religiosa que justificava as mortes como uma punição divina, com base numa vida supostamente corrupta, não parecia muito convincente. Por que um Deus bondoso mataria tantas pessoas?

            Na passagem do século dezoito para o dezenove a concepção de mal seria modificada. Não dava mais para identificar um fenômeno natural, geológico, com a vontade divina. Susan Neiman aponta para uma distinção entre o “mal natural” e o “mal moral”. O terremoto de Lisboa cumpriu uma função pedagógica importante de tirar de Deus a explicação do mal e transferir a responsabilidade moral sobre a existência aos seres humanos. Para os iluministas, caberia a nós controlarmos a natureza e melhorar o mundo através do conhecimento e da racionalidade. Com o tempo isso  se mostraria um fracasso na sociedade capitalista, com a destruição do meio ambiente, o colonialismo e a experiência de Auschwitz. Descobrimos, então, que podemos produzir um mal indescritível.

            Em Oldboy o mal é movido por ressentimentos, ódio, culpa e sadismo. Humano e desencantado. Não há destino conduzindo as relações edipianas, mas uma ausência de sentido que revela o flagelo da existência.

 

*A opinião deste texto é exclusivamente do autor. 

Estevam Dedalus é professor do IFCE

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